Portuguese Marimba Quartets é um programa exclusivamente dedicado à obra de compositores portugueses desafia-dos a expandir uma formação pouco usual. O Drumming GP reinventa-se na formação de quatro marimbas num concerto em que o elemento cénico-espacial é gerido como um parâmetro fundamental na concretização de cada uma das peças e na linha narrativa do espetáculo.

Reúnem-se neste disco cinco obras de compositores portugueses para quarteto de marimbas.

A maior parte delas foi encomendada especificamente para este projeto, tendo sido composta ao longo de um período que se estendeu de 2017 a 2021. Vários dos compositores são colaboradores de longa data dos Drumming (Carlos Guedes, Daniel Bernardes e José Alberto Gomes), enquanto outros têm aqui a primeira colaboração (Miguel Duarte Oliveira e Pedro Lima). Cada um deles explora, à sua maneira, as potencialidades oferecidas pelo quarteto de marimbas, sendo que três das peças incluem também eletrónica. Os estilos e estéticas são efetivamente muito diversos, refletindo a variedade das práticas composicionais em Portugal.

Esta aposta em criações novas enquadra-se no objetivo dos Drumming e do seu diretor artístico, Miquel Bernat, de expandir o repertório para quarteto de marimbas. Ao longo do seu percurso, os Drumming têm apresentado e estreado bastante música escrita para esta formação, de compositores como Arturo Fuentes, Jesús Torres, Timothy Ferchen ou Ashkan Behzadi. Têm também tocado algumas das obras mais conhecidas para este quarteto, como Vespertine Formations (2003) de Christopher Deane e Mari II (1992) de Franco Donatoni. Com este projeto, apresentam o primeiro CD em Portugal exclusivamente com obras para quarteto de marimbas.

Miguel Duarte Oliveira – Fractal (2007/2021)

Ao contrário de outras peças deste disco, compostas como resultado de uma encomenda direta dos Drumming, Fractal tem uma história mais antiga. Originalmente escrita em 2007, foi um dos primeiros trabalhos de composição de Miguel Duarte Oliveira como aluno na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE-Porto). Ensaiada nessa altura por colegas de percussão (alguns deles membros, hoje, dos Drumming e participantes nesta gravação), a peça não chegou a ser estreada. Vem agora a público, em 2021, numa versão ligeiramente diferente: em vez de ser escrita para duas marimbas, cada uma tocada por dois instrumentistas, é agora transcrita (e reorquestrada) para quatro marimbas. Além disso, o compositor acrescentou uma conclusão mais meditativa, em contraste com o resto da peça, que é mais rítmico.

O título Fractal insere esta peça numa tradição de composições relativamente recentes que aludem a essa forma matemática (caracterizada pela replicação de uma mesma estrutura em diferentes níveis). O uso que Oliveira faz do fractal é mais próximo de Ligeti do que de Xenakis – dois dos compositores que também usaram esse modelo. A afirmação de Oliveira de que a sua peça “pretende criar um resultado sonoro semelhante ao efeito hipnótico e meditativo que a imagem de um fractal nos transmite visualmente” é próxima de uma afirmação de Ligeti, que disse não procurar “uma tradução matemática direta [do fractal] na sua música, ao contrário de Xenakis. A influência é poética.”

Fractal baseia-se num motivo de sete notas que, ao longo da peça, aparece sobreposto em múltiplas versões (completas ou incompletas) e em diferentes velocidades. A repetição e evolução lenta e gradual desse motivo revela a influência de compositores minimalistas como Reich, Glass e Riley, uma influência comum na obra de Oliveira. Encontram-se processos musicais similares, por exemplo, em Bonsai (2008), para flautim solo, e em Bridge (2008), para piano e bombo, neste caso num ambiente harmónico mais atonal. De resto, a sua música revela um certo ecletismo, que o próprio compositor associa a uma estética pós-moderna.

Daniel Bernardes – Quarteto de Marimbas nº 1 (2019)

Composto em 2019, o Quarteto de Marimbas nº 1 relaciona-se diretamente com um ciclo de outras nove peças que Daniel Bernardes compôs entre 2016 e 2019. Todas essas peças têm a mesma estrutura formal, dividida em três partes contrastantes: uma primeira (intitulada Fragmentos ou Ostinato) com uma maior pluralidade de materiais e com texturas e harmonias mais complexas; uma segunda (Interlúdio), parte mais simples e de caráter lírico, solista e improvisado; e uma terceira parte (Canção), em que sobressai uma melodia de sabor popular dentro de um ambiente rítmico pulsado.

Apesar desse molde comum, as peças são muito diferentes: há uma distância considerável, por exemplo, entre o ambiente poético e intimista de Fragmentos, Interlúdio e Canção IV (2018), para saxofone soprano e vibrafone, e as sonoridades mais ásperas de Ostinato, Interlúdio e Canção III (2017), para três trombones e tuba. E, enquanto que algumas peças – como Fragmentos, Interlúdio e Canção IX (2019), para big band – pedem ao intérprete que improvise na secção central, noutras a “improvisação” está inteiramente escrita, à partida, pelo compositor.

Ainda que não se integre explicitamente nesse ciclo, o Quarteto de Marimbas segue também essa forma tripartida. É, todavia, uma peça muito diferente das outras. Habituado a trabalhar com harmonias sustentadas, Daniel Bernardes teve aqui o desafio de adaptar a sua escrita a um conjunto de instrumentos de sonoridade mais seca, sem grande ressonância nem capacidade de sustentação. A solução passou, em parte, pela densidade das texturas: embora cada som seja curto, há tantos eventos diferentes em simultâneo que o som global nunca para. Uma outra solução passa pela exploração de ecos entre os vários instrumentos em função da sua distribuição no espaço, lembrando processos típicos da música eletrónica.

O Quarteto de Marimbas é também ilustrativo do cruzamento de referências típico da música de Daniel Bernardes. Formado paralelamente em piano clássico (em Paris, 2004-07) e em piano jazz (em Lisboa, 2008-11), interessa-se também pela música erudita contemporânea, tendo participado nos Seminários de Composição da Gulbenkian com Emmanuel Nunes e nos Stockhausen-Kurse für Musik (na Alemanha). A influência das vanguardas eruditas revela-se na adoção de técnicas seriais de Boulez e Stockhausen. Bernardes organiza as suas séries, no entanto, de modo a produzir sonoridades mais próximas do jazz moderno, razão pela qual a influência serial poderá não ser diretamente percetível. Outras referências serão mais audíveis nesta peça: certas texturas da primeira parte lembram Messiaen, enquanto que a estrutura rítmica da parte final revela afinidades com as polirritmias africanas.Esse ecletismo, em que o minimalismo constitui um de vários estilos, manifesta-se nitidamente nas suas Cinco Miniaturas para oboé, clarinete e fagote (distinguidas em 2009 com o Prémio Lopes-Graça), assim como no seu trabalho mais recente para cinema e televisão.

José Alberto Gomes – No Moon (2017)

Formado em composição tradicional, mas desde cedo ligado às novas tecnologias, José Alberto Gomes tem trabalhado em múltiplas frentes, incluindo música escrita para instrumentos clássicos (quase sempre acompanhados de eletrónica), eletrónica pura, música funcional para teatro e cinema e sound art (esculturas sonoras ou instalações). No Moon insere-se na primeira dessas vertentes, ligando-se a outras peças para percussão e eletrónica, como Proyector I, para vibrafone e fita (2009-14); NI, para multi-percussão e eletrónica (2014); Tríptico, para marimba e fita (2015); e Proyector II, para multi-percussão e eletrónica (2016). A percussão é claramente um dos principais centros do seu trabalho composicional, resultado não só do seu interesse pelas possibilidades tímbricas desse grupo instrumental, mas também de colaborações que tem desenvolvido com instrumentistas como João Tiago Dias, Nuno Aroso e Jorge Lima.

No Moon partilha várias características com algumas dessas peças: um ambiente contemplativo e imersivo, quase ritualístico, distante da direcionalidade típica da música clássica ocidental; o uso da eletrónica como uma camada mais contínua que serve de plano de fundo à componente instrumental, dando-lhe maior profundidade; e a ambiguidade entre instrumentos e eletrónica, em que, devido ao uso de sons gravados dos instrumentos na parte eletrónica, se torna por vezes difícil saber se o que ouvimos é tocado pelo instrumentista humano ou lançado de um computador.

A peça apresenta também traços mais particulares. Talvez o mais notório seja a abordagem ao quarteto de marimbas como se fosse um único (grande) instrumento espalhado pelo espaço, no sentido em que não ouvimos os instrumentos individualmente, mas antes um todo rítmica e timbricamente rico em que os quatro instrumentos se fundem como se fossem um só. Essas texturas são geralmente muito contínuas e oscilam entre momentos estáticos e contemplativos (mais longos) e outros frenéticos e hiperativos (geralmente mais curtos).

Ouvem-se, aqui e ali, ecos do minimalismo, de Ligeti ou de Michael Gordon, entre outras referências e citações de linguagens mais distantes, como a de Messiaen.

Pedro Lima – Fake Nature Makes Me Cry (2021)

Quando Miquel Bernat contactou Pedro Lima, em 2021, para compor uma peça para este CD, já a maior parte das outras peças estavam concluídas. Pensando no equilíbrio global do disco, Bernat pediu uma peça mais lenta. (Como é típico de muita música para marimba, a maior parte das outras peças vive da rapidez e da rearticulação das notas – uma forma de contrariar o decaimento rápido característico do som da marimba.) Bernat sugeriu que Lima explorasse o som obtido a tocar com o arco nas lâminas do instrumento, de modo a conseguir sons mais sustentados e com um ataque mais suave.

Iniciou-se, então, um longo trabalho exploratório, em que Pedro Lima colaborou com João Braga Simões, um dos percussionistas dos Drumming. Exploraram não só o som (já conhecido) do arco no teclado da marimba, mas também a possibilidade (muitíssimo invulgar, senão inédita) de tocar com o arco nos tubos ressoadores que se encontram por baixo do teclado, obtendo uma sonoridade próxima do ruído branco. A peça joga com esses diferentes timbres, combinando-os com sonoridades mais convencionais (tocadas com baquetas) e sons eletrónicos (uns tocados ao vivo pelos próprios percussionistas, outros trabalhados em estúdio).

O uso dos tubos vai também ao encontro do fascínio, declarado pelo compositor, pelo “facto de que a marimba se constrói de forma oposta ao nosso mundo, com a madeira (terra) por cima e as estruturas metálicas (edifícios) por baixo.” Essa ideia da marimba como “cidade invertida” e dos seus tubos como uma espécie de “submundo” misterioso serve também de pretexto para “meditar e celebrar a artificialidade, o digital [e] o industrial,” dimensões naturalmente reforçadas pela presença da eletrónica. Essa invocação explícita de um imaginário poético e extramusical é comum na abordagem de Pedro Lima, compositor formado na Guildhall School of Music and Drama e com uma forte ligação à ópera, ao texto e ao drama.

Essa ligação é clara, por exemplo, nas óperas de câmara Reel Woman (2018) e Dois Estranhos a Comentar Qualquer Coisa (2021), esta última também com libreto seu. Mesmo as suas peças instrumentais podem ter texto, como é o caso de Talking ‘bout My Generation (2019), escrita para o Remix Ensemble durante a sua residência na Casa da Música. Fake Nature Makes Me Cry será um exercício um pouco mais abstrato, mas ainda que não haja um texto explícito, há claramente um subtexto e uma dramaturgia latentes.

Carlos Guedes – Time Poem #1 – Sliding Pulses / Time Poem #2 – Euclidean Imbalance (2021)

Logo numa primeira escuta, há duas características percetíveis em Time Poem #1 e #2: a ênfase no ritmo e uma espécie de hibridismo tímbrico, em que se esbatem as fronteiras entre os instrumentos e a eletrónica.

Ainda que essa ênfase em aspetos rítmicos, métricos e tímbricos seja comum na música de Carlos Guedes, manifesta-se de modo distinto nas duas peças. A primeira utiliza os chamados “ritmos de Risset,” explorados pelo compositor Jean-Claude Risset; trata-se de ritmos que provocam a ilusão de que o andamento está constantemente a acelerar ou desacelerar (em Time Poem #1, o efeito é de accelerando).

A segunda peça explora os chamados “ritmos euclidianos,” teorizados por Godfried Toussaint (2005); nesses ritmos, os ataques são distribuídos da forma mais uniforme possível por uma dada grelha métrica, produzindo frequentemente ritmos que são quase (mas não inteiramente) regulares.

Já o hibridismo tímbrico é particularmente evidente na segunda peça, em que os sons sintéticos se fundem e confundem com os sons instrumentais, sendo muitas vezes difícil para o ouvinte determinar se o que escuta é acústico ou eletrónico.

As peças revelam afinidades com diferentes estilos e linguagens. De modo mais superficial, poderão lembrar Steve Reich – mas como evitar isso com marimbas a tocar ostinatos numa harmonia diatónica? Uma referência mais subtil é ao rock progressivo dos anos 70, alusão sugerida pelos timbres dos sintetizadores analógicos, bem como por certos gestos que evocam riffs de rock.

De resto, essa exploração de sons sintéticos “antigos” (ligados também aos filmes de ficção científica dos anos 50 e 60) associa-se a uma estética que o próprio compositor apelida de “retro-futurista” e que se pode ouvir em composições eletrónicas recentes como The Infected City e In Search of a New Hope (2020).

Uma influência ainda mais importante é a de certas músicas extra-europeias. Não só os ritmos euclidianos são típicos da música africana, afro-cubana e brasileira; além disso, ambas as peças exploram conscientemente aspetos rítmicos da música carnática (do sul da Índia).

Professor, desde 2013, na New York University de Abu Dhabi, Carlos Guedes trabalha quotidianamente num contexto musical extremamente multicultural. Nas suas próprias palavras, tem procurado “evoluir musicalmente absorvendo e percebendo melhor aspetos de outras culturas.”

Isso manifesta-se não só em composições como Time Poem e Fragile Ecosystems (2019), para bombo e eletrónica, mas também na participação em grupos de improvisação multiculturais como os Hindustabic Electronica, constituídos nos primeiros meses da pandemia de Covid-19 como um ensemble à distância em que Guedes se juntava a músicos árabes e hindustani.